terça-feira, 4 de maio de 2010

11 | Materiais | Kuhn

Aqui está o prometido texto... É grande, mas não tão complicado como alguns que já lemos!
No início estão os tópicos que abordámos.
Have Fun


Thomas Kuhn – Objectividade, Juízo de valor e Escolha de Teorias

“Começarei por perguntar: quais são as características de uma boa teoria científica? Entre muitas das respostas usuais, seleccionei cinco, não porque sejam exaustivas, mas porque são individualmente importantes e em conjunto suficientemente diversificadas para indicar o que está em jogo. Em primeiro lugar, uma teoria deve ser precisa: quer dizer, no seu domínio, as consequências que podem ser deduzidas de uma teoria devem estar em comprovada concordância com os resultados das experiências e observações existentes. Em segundo lugar, uma teoria deve ser consistente, não só internamente ou com ela própria, mas também com outras teorias correntemente aceites e aplicáveis a aspectos relacionados da natureza. Terceiro, deve ser abrangente: em particular, as consequências de uma teoria devem estender-se muito além das observações, leis ou subteorias particulares, para as quais ela foi inicialmente concebida. Quarto, e relacionado de perto com o anterior, deve ser simples, ordenando fenómenos que, sem ela, seriam individualmente isolados e, em conjunto, seriam confusos. Quinto - um aspecto um tanto ou quanto menos comum, mas de especial importância para as decisões científicas reais - uma teoria deve ser fecunda, originando novas descobertas: deve desvendar novos fenómenos ou relações anteriormente não detectadas entre fenómenos já conhecidos. Estas cinco características - precisão, consistência, abrangência, simplicidade e fecundidade - são, todas elas, critérios comuns para avaliar a adequação de uma teoria. [...]

Não obstante, aqueles que têm de usar estes critérios deparam-se habitualmente com duas espécies de dificuldades ao escolher, digamos, entre a teoria astronómica de Ptolomeu e a de Copér¬nico, ou entre as teorias da combustão do oxigénio e do flogisto, ou entre a mecânica newtoniana e a teoria quântica. Individualmente, os critérios são imprecisos: os indivíduos podem legitimamente diferir quanto à respectiva aplicação em casos concretos. Além disso, quando desenvolvidos em conjunto, mostram repetidamente entrar em conflito uns com os outros; a precisão pode, por exemplo, ditar a escolha de uma teoria, o alcance pode ditar a escolha da sua rival. [...]

Quando os cientistas têm de escolher entre teorias rivais, dois homens comprometidos comple¬tamente com a mesma lista de critérios de escolha podem, contudo, chegar a conclusões diferentes. Talvez interpretem a simplicidade de maneira diferente ou tenham convicções diferentes sobre o âmbito de campos em que o critério de consistência se deva aplicar. Ou talvez concordem sobre estas matérias, mas divirjam quanto aos pesos relativos a atribuir a estes ou a outros critérios, quando vários se aplicam em conjunto. No que respeita a divergências deste género, nenhum conjunto de critérios de escolha já proposto serve de alguma coisa. Um pode explicar, como é característico do historiador, por que razão homens particulares fizeram escolhas particulares em tempos particulares. Mas, para esse propósito, tem de se ir além da lista de critérios partilhados para as características dos indivíduos que fizeram a escolha. Quer dizer, há que lidar com características que variam de um cientista para outro sem com isso arriscar minimamente a sua adesão aos cânones que tornam científica a ciência. Embora tais cânones existam e deva ser possível encontrá-los (sem dúvida, os critérios de escolha com que comecei estão entre eles), não são por si suficientes para determinar as decisões dos cientistas individuais. Para esse propósito, os cânones partilhados têm de ser completados de maneiras que diferem de um indivíduo para outro.

Algumas das diferenças que tenho em mente resultam da experiência anterior do indivíduo como cientista. Em que parte da área trabalhava ele quando se confrontou com a necessidade de escolher? Por quanto tempo trabalhou nele? Qual foi o seu sucesso? E quanto do seu trabalho dependeu de conceitos e técnicas contestados pela nova teoria? Outros factores importantes para a escolha ficam fora das ciências. A rápida adopção do Copernicanismo por parte de Kepler ficou a dever-se em parte à sua imersão nos movimentos Neoplatónicos e Herméticos da sua época; o Romantismo Alemão predispôs aqueles que afectou a reconhecer e aceitar a conservação da energia; o pensamento social britânico do séc. XIX teve uma influência semelhante sobre a disponibilidade e aceitabilidade do conceito de Darwin da luta pela existência. Outras diferenças significativas são funções da personalidade. Alguns cientistas põem mais ênfase do que outros na originalidade, estando correspondentemente mais dispostos a correr riscos; alguns cientistas preferem teorias abrangentes e unificadas a soluções precisas e pormenorizadas de problemas de alcance aparentemente mais restrito. Factores diferenciadores como estes são descritos pelos meus críticos como subjectivos, e são postos em contraste com os critérios partilhados ou objectivos de que parti. Embora mais à frente ponha em causa este uso dos termos, vou aceitá-los por enquanto. A minha ideia é, pois, que toda a escolha individual entre teorias rivais depende de uma mistura de factores objectivos e subjectivos, ou de critérios partilhados e individuais. Visto que os últimos não são habitualmente considerados na filosofia da ciência, a ênfase que lhes dei tornou difícil aos meus críticos dar-se conta da minha crença nos primeiros.

O que disse até agora limita-se primariamente a descrever o que se passa nas ciências nos momentos em que se dá a escolha de teorias. Como descrição, não foi de resto contestada pelos meus críticos, que rejeitam, em vez disso, a minha afirmação de que esses factos da vida científica têm importância filosófica. [...]

[...] A procura [por parte de muitos filósofos] de procedimentos algorítmicos [capazes de ditar uma escolha unânime e racional] continuou durante algum tempo e produziu resultados poderosos e esclarecedores. Mas todos estes resultados pressupõem que os critérios individuais de escolha podem ser enunciados sem ambiguidade e ainda que, se mais do que um se mostrar relevante, estaria disponível para a respectiva aplicação uma medida correcta do peso relativo desses critérios. Infelizmente, quando a escolha em causa é entre teorias científicas, poucos progressos têm sido feitos em relação ao primeiro desiderato e nenhuns em relação ao segundo. A maior parte dos filósofos deviam, por conseguinte, penso eu, olhar agora para o tipo de algoritmo que tradicionalmente se tem procurado como um ideal definitivamente inatingível. [...]

Todavia, mesmo um ideal, para se manter credível, exige alguma prova da sua relevância para as situações a que supostamente se aplica. Ao afirmar que tal prova não precisa de recorrer a factores subjectivos, os meus críticos parecem apelar, implícita ou explicitamente, para a bem conhecida distinção entre os contextos de descoberta e de justificação. Quer dizer, aceitam que os factores subjectivos que eu invoco desempenham um papel significativo na descoberta ou invenção de novas teorias, mas também insistem em que esse processo inevitavelmente intuitivo fica fora dos limites da filosofia da ciência e é irrelevante para a questão da objectividade da científica. A objectividade entra na ciência, acrescentam eles, através dos processos pelos quais as teorias são testadas, justificadas ou ajuizadas. Esses processos não envolvem ou, pelo menos, não precisam de envolver, quaisquer factores subjectivos. Podem ser governados por um conjunto de critérios (objectivos) partilhados pela totalidade do grupo competente para ajuizar.

Já argumentei que essa posição não se ajusta às observações da vida científica [...]. O que está agora em jogo é algo diferente: se esta invocação dos contextos de descoberta e de justificação fornece ou não uma idealização plausível e útil. Penso que não, e posso defender melhor a minha posição sugerindo, em primeiro lugar, uma fonte provável da sua aparente validade. Suspeito que os meus críticos foram enganados pela pedagogia da ciência ou pelo que algures chamei de ciência de manual. No ensino da ciência, as teorias são apresentadas juntamente com aplicações exemplares e essas aplicações podem ser vistas como provas. Mas essa não é a sua principal função pedagógica (os estudantes de ciência são aflitivamente propensos a aceitar a palavra dos professores e dos manuais). [...] O contexto da pedagogia difere quase tanto do contexto de justificação como do contexto de descoberta.

[...] Em resumo, antes de o grupo a aceitar, uma teoria nova foi testada ao longo do tempo pela investigação de muitos homens, alguns trabalhando nela, outros lidando com a sua rival tradicional. Semelhante modo de desenvolvimento, contudo, exige um processo de decisão que permita a homens racionais discordar, e essa discordância devia ser excluída pelo algoritmo partilhado que os filósofos em geral procuraram. Se ele estivesse à sua disposição, todos os cientistas concordantes tomariam a mesma decisão ao mesmo tempo. Com padrões de aceitação tão baixos, passariam de um ponto de vista global e atractivo a outro, nunca dando à teoria tradicional uma oportunidade para fornecer atractivos equivalentes. Com padrões mais elevados, ninguém que satisfizesse o critério de racionalidade estaria inclinado a tentar a nova teoria para a articular de modo a que mostrasse a sua fecundidade ou revelasse a sua precisão e alcance. Duvido que a ciência sobrevivesse à mudança. O que de um ponto de vista pode parecer a perda e a imperfeição de critérios de escolha concebidos como regras pode, quando os mesmos critérios são vistos como valores, aparecer como um meio indispensável de propagar o risco que a introdução ou o apoio à novidade sempre acarreta.

Mesmo os que me seguiram até aqui desejarão saber como um empreendimento baseado em valores do género que acabei de descrever pode desenvolver-se como o faz uma ciência, produzindo repetidamente técnicas novas e poderosas de previsão e controlo. Infelizmente, não tenho qualquer resposta para esta questão, mas isso é apenas outra maneira de dizer que não reivindico a resolução do problema da indução. Se a ciência progredisse devido a algum algoritmo de escolha partilhado e obrigatório, também seria incapaz de explicar o seu sucesso. Sinto agudamente essa lacuna, mas a sua presença não altera a minha posição quanto à tradição."

Thomas Kuhn, A Tensão Essencial, «Objectividade, Juízo de Valor e Escolha de Teorias».

1 comentário: